segunda-feira, 15 de maio de 2017

Homens de Canivete

Os homens, incidentemente, se dividem também em duas categorias: os que são e os que não são de canivete.

Eu, por mim, confesso que sou homem de canivete. Meu pai também era: tinha na gaveta da escrivaninha um canivete sempre à mão, um canivetinho alemão com inscrições de propaganda da Bayer. Não se tratava de arma de agressão, mas, ao contrário, destinava-se, como todo canivete, aos fins mais pacíficos que se pode imaginar: fazer ponta num lápis, descascar uma laranja, limpar as unhas.

Conteúdo dos bolsos do ex-presidente americano
Abraham Lincoln no dia da sua morte
É, aliás, o que sucede com todos os homens arrolados nesta categoria a que honrosamente me incluo – os homens de canivete: são pessoas de boa paz e que só lançariam mão dele como arma defensiva quando se fizesse absolutamente necessário.

Alegria de criança que não abandona o homem feito: a de ter um canivete. Era de se ver a excitação de com que meu filho de dez anos me pediu que não deixasse de lhe comprar um na Alemanha. É perigoso – advertem os mais velhos, cautelosos – cautela que não resiste à minha convicção de que o menino saberá lidar com ele como é mister, pois tudo faz crer que virá a ser, como o pai, um homem de canivete.

Os mineiros geralmente são. Quem descobriu isso, penso, foi o Otto, que não deixa de sê-lo, ainda que de chaveiro e, certamente, por atavismo – pois me lembro da primeira pergunta que lhe fez seu pai ao chegar um dia ao Rio:

- Você sabe onde fica uma boa cutelaria?

Sempre fui um grande frequentador de cutelarias. Quando o poeta Emílio Moura aparece pelo Rio, não deixo de acompanhá-lo a uma dessas casas para olhar uns canivetes – pois se trata de um dos mais autênticos homens de canivete que eu conheço, e dos de fumo-de-rolo. Entre meus amigos mais chegados, embora nem todos o confessem, muitos fazem parte dessa estranha confraria. Paulo Mendes Campos não esqueceu de recomendar-me determinada marca de canivete ao saber de minha viagem – e, se bem me lembro, seu pai é um dos infalíveis portadores de canivete que se tem notícia. Rubem Braga também deixou-se denunciar numa esplêndida crônica, “A Herança”, que pode ser lida em Borboleta Amarela, a respeito de um irmão que abria mão de tudo, mas reclamava do outro a posse de um canivete.

Alguns continuam sendo homens de canivete, mesmo que hajam perdido o seu ainda na infância. Aliás, os homens de canivete vivem a perdê-lo, não sei se pelo prazer de adquirir outro. Para identificá-lo, basta estender a mão e pedir: me empresta aí o seu canivete. Se se tratar de alguém que o seja, logo levará naturalmente a mão ao bolso e retirará o seu canivete. Foi o que fez Murilo Rubião, por exemplo, que é outro: ao chegar da Espanha, a primeira coisa que me exibiu foi seu belo canivete, adquirido em Sevilha.

Para terminar, digo que não há desdouro algum em não ser homem de canivete. Há homens de ferramenta, de isqueiro, de chaveiro e até de tesourinha. Graciliano Ramos não era homem de navalha? Homens de revólver é que não são uma categoria das que mais admiro: até parece que não são homens, para precisar de uma proteção que lhes poderia propiciar, em caso de necessidade, um simples canivete.

(SABINO, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino, Rio de Janeiro, Record, 1986 - pp. 165-7)

Nota (1) do Cavanha: O texto completo é de autoria de Fernando Sabino e eu imagino que quando foi escrito o Rio de Janeiro estava longe de ser o que é hoje. Creio que nos dias atuais ele mudaria de ideia em relação aos "homens de revólver"...

Nota (2) do Cavanha: Eu vou mais além - acredito nos "homens EDC" (every day carry) - homens que carregam canivete, faca, ferramenta, isqueiro, chaveiro, tesourinha, revólver e o que mais for necessário para atender as necessidades diárias! Eu sou um deles!

Quem é o seu herói?

A emboscada dos judeus - um herói inesperado Quando amanheceu, os judeus se reuniram e ...